terça-feira, 21 de março de 2017

Bebo-te nas taças do teu nariz

Bebo-te nas taças do teu nariz

Para Bento, que me ensinou:

no aproximar das narinas
cumprimentam-se os esquimós
para sorver os ânimas mútuos.

       exato silêncio roça o teu rosto
       auscultado por meu olhar atento
       além do teu verbo além-suposto
       sorvo-te nas narinas teu alento

       recolho-te os traços ancestrais
       ao corpo de teus sentidos expostos
       viajo rio adentro teus portais

       encontram-se os ânimas sobrepostos
       bebem-se nossas regiões anímicas
       fundem-se as nuas paisagens primas
                       


       Vilma Silva

sábado, 18 de março de 2017

Apagamentos

Apagamentos


rasgos de luz rutilam nas retinas
o mundo sela em si cenário mudo
as fatigadas horas ao contrário
do verso que arte em mim fez, sobretudo

o deserto que a mim pariu a sina
o brilho longe, meu retrato mudo
rasgado em tiras foscas de quem declina
a voz calada, a dor e meu escudo

dentro a sondar o quê se me defina
o que tanto me pôs em longa espera
veludo a desfiar dor e ruína

rasgado feixe em luto me exaspera
deponho ao pé dos santos o que aludo
as horas postas de meu verso mudo

***
Vilma Silva

Nuvoso

AS NUVENS
tensas
prenhas as nuvens adensam
enovelam nas brenhas o sol
céu espesso
opresso
silvos ruivos
uivos de leões
truões
A CHUVA
malha
anágua de alva bruma
espuma de águas
seu lavor:
lavar a penumbra
as plumas plúmbeas
opressa tumba do sol

***
Vilma Silva

Ontologia

ONTOLOGIA

ouvidos que ouvem,
olhos que veem
língua que degusta
nariz que cheira,
mãos que tateiam:
câmeras de captação do real
em meu corpo são
adoidadas lentes que enganam:
somos doidos por natureza
o real é apenas cenário e louca alucinação
os sãos aqueles que o são
levam o olhar à deriva
deserdados do ontem, do hoje, do amanhã
fora da rede do tempo
cheiram e degustam e ouvem
e tateiam os mundos salivantes
embriagados dentro odores dentro
extáticos dentro imagens dentro...
sãos no corpo insano são:
curandeiros do corpo pesado
curam-no na leveza aérea do nariz
no cetim dos olhos, no fogo da língua,
nas asas das mãos dentro ternuras
 corpo andante dentro mundo fora dentro
sãos no corpo insano
o ser despido e único são

***
Vilma Silva

sábado, 11 de março de 2017

Vida secreta de um lúcido insano

Vida secreta de um lúcido insano


Desliza por entre os dedos o mundo
Sou ampulheta
Sei em que ponto estamos da apoteose material
A nossa evolução fatal não nos deve assustar

O mar: palavra audível da extensão
O cosmo: palavra inaudível da vastidão
Sou lá

Bebo a vida e fico bêbado
A multidão dentro de nós
estamos comigo nesse isolado eus estamos
A vida bebo e fico bêbado



Vida secreta de um lúcido insano II

Mataram a beleza
Em algum lugar de mim estou moribundo
Ozíris despedaçado
Pedaços de mim voam ao vento
Morro de manhã e nasço ao anoitecer

quero o quê
A palavra impronunciável
Meu espírito chora nas noites
De tanto olhar estrelas e galáxias
Lá eu quero tocar
Sou lá.

O meu conceito de beleza?
Sou lá

Risíveis receitas torpes de ser
Não me peçam feituras de vida
Meu receituário está nos pergaminhos
eu me adentro
Lá onde mora o impronunciável feito:
eu mesmo no ato mesmo de estar sendo

O olhar de dentro vê a humanidade toda
Somos eus no todos nós
O todo nós somos eus
Multiplicado eu no espelho do tempo
viagem adentro galaxial
Sou aqui

Peço um riso concordância para o sou aqui
Alistem-se quantos queiram sou lá
multiplicado eu no espelho do tempo
O vasto império da nossa força:

O meu conceito de beleza?
Sou lá aqui




Exercícios de tradução infiel

Sonetos ingleses, Fernando Pessoa

Variação ao Soneto XVIII
Vilma Silva

Infindo espaço, irmão da noite universal,
Vazio e trevas em um só mistério une;
As estrelas nautas, no seu lume vestal
Mistério igual flutua ao pensamento imune;

O rio do tempo na vida se revela;
De seu próprio nada o silêncio se esvazia;
Labirinto, o pensar se aflige em sua cela:
Perdido o fio, e a razão se desfaz vazia.

Ao pensar nisso, acolhe-me a deserta nau:
Vazio de saber, o ideador se aquieta,
E acima do idear ergue a mão objetal;
Ao fitá-la alheio ao pensar o olhar se queda:

     O espanto do meu espanto afinal penetra
     A vastidão universal, erma e quieta.

          

Soneto XVIII
Fernando Pessoa

Indefinite space, which, by co-substance night,
In one black mystery two void mysteries blends;
The stray stars, whose innumerable light
Repeats one mystery till conjecture ends;
The stream of time, known by birth-bursting bubbles;
The gulf of silence, empty even of nought;
Thought's high-walled maze, which the outed owner troubles
Because the string's lost and the plan forgot:
When I think on this and that here I stand,
The thinker of these thoughts, emptily wise,
Holding up to my thinking my thing-hand
And looking at it with thought-alien eyes,
     The wonder of my wonder looketh past

     The universal darkness lone and vast.

quarta-feira, 8 de março de 2017

Sujeito e objeto

Sujeito e objeto

os pés dobram-se em curvas de exorbitâncias
estendem a extensão que não há
e dos olhos a paisagem brota,

a rosa
cálice sobre sépalas
exala cor e odor...
ao mais do que de si
pétalas...

pele atrás da pele
a corola me sorve dentro
pétalas...

cálice sobre sépalas
ao mais do que pétalas
exalo cor e odor


***
Vilma Silva

Tecelagem





I
a noite fria
fia a noite
o breu da trama
o dia desfia

II
Penélope fia
na noite fia
dia desfia
fia noite
desfia o dia
fia e desfia—

fia a trama de sua trama:
desfia a trama fria
e trama a outra trama

                        Vilma Silva



Súmula



parca via a
malha do tempo
         contempto

adormeço
a teia enleia o
         arremesso

tecido fido
fio assíduo
         fito

Treme e exala a
fonte alta
         ficto

baila o enlaço
belo regaço
         abraço




Vilma Silva

POEMA



Poema

 

As imagens do mundo são teores

plasmados em minha tela interna

dançam sonâmbulos sons estes senhores

acrobatas que em si perfilam

                     variadas formas


Tropeçando os mundos circundantes,

por entrar em veias é que desnudo o nome

rio fundo onde teço o meu ser em teias

 




                                                                        Vilma Silva

Apoteose

                                                                                                                                  Mênstruo:
fluxo de léxicos inauditos,

sêmen:
fogo que sopra verbo nas trevas,

útero:
vaso que gesta sopros na sua noite:

e labaredas ardem a enfeitiçar a toda
extensão da pele humana de estalos e eriçares
entre espirais de fogo,

o engendrar do vaso, do corpo, da forma, do fogo
eco abrasador de palavras a incendiar noites
o fogo

chio chi cio chi cio chio
.                     
.                     
.                     
.                     
.                     
.                     



Vilma Silva

SEGUNDO MISTÉRIO

A casa. Com a árvore e o sol, o primeiro e o mais frequente desenho das crianças. É onde ficam a mesa, a cama e o fogão. As paredes externas e o teto nos resguardam, para que não nos dissolvamos na vastidão da Terra; e as paredes internas, ao passo que facultam o isolamento, estabelecem ritos, definidas relações entre lugar e ato, demarcando a sala para as refeições e evitando que engendremos os filhos sobre a toalha do almoço. Através das portas, temos acesso ao resto do Universo e dele regressamos; através das janelas, o contemplamos. ... 
(Osman Lins, “Retábulo de Santa Joana Carolina”. Nove, novena)


A casa
conjunção carnal das esferas
forma exalada da fenda
informe senda da galáxia

invenção de congruências
convergência da terra, ar, fogo, e águas os fios
semente e grão no tronco axial do cosmo
tear das galáxias

rito de geômetras e arquitetos arcaicos
arquétipos moldados em obra expelida no sopro
destino do pensar límbico

poema da morada entre janelas que olham:
portas que abrem vias aos pés
na ordem das formas pensadas


***

No interior da galáxia
além da fenda escura
o que não há espera para existir

Além da fenda negra dorme
o Eu entre malhas de inexistência.
Ascende-se a centelha que o engendra carne:

O Eu desenha a casa o sol a árvore
Premissas convertidas em carne
Na fenda escura do Eu

***

na região em mim
além da carne
a casa adornada de árvore e sol
espera para existir:

engendro sobre a toalha do almoço
a árvore e o sol, a casa
me engendro carne de minha carne
e me fico sendo galáxias


SEGUNDO MISTÉRIO
... Um bando de homens faz uma horda, um exército, um acampamento ou uma expedição, sempre alguma coisa de nostálgico e errante; um agrupamento de casas faz uma cidade, um marco, um ponto fixo, um aqui, de onde partem caminhos, para onde convergem estradas e ambições, que estaciona ou cresce segundo as próprias forças, e será talvez destruída, soterrada, e mesmo assim poderá esplender de sob a terra, em silêncio, das trevas, por vias do seu nome.

(Osman Lins, “Retábulo de Santa Joana Carolina”. Nove, novena)


A cidade

Soterrada, a cidade retorna
Ao ponto inicial da galáxia
ideia imanente
expectante de seu nome potencial.

Noutra era consubstanciada
a cidade retoma o nome noutro nome.

***

No íntimo da galáxia o nome vibra sons potenciais
Todas as coisas ideiam dentro da galáxia e querem existir
Vim de seu centro e trouxe o seu dicionário junto
No meu íntimo o nome vibra e quer existir

Preexisto no íntimo da galáxia
O barro me fez homem
Todas essas coisas estavam em mim antes que eu fosse.

***

O barro moldado em espaço e tempo, astros e sois,
O barro moldado em homem, a palavra, o cerne
A cidade, a casa, os caminhos, o nome...

A galáxia é minha mãe e me tem em seu seio
No sopro se inalou em mim e me inseriu seu gene

O meu sopro é a galáxia em mim
E o sopro é verbo
Antes de ser já sou

Além do meu horizonte de eventos
Para lá da fenda escura exalo mundos


(Vilma Silva)



TRAVESSIA


Meu barco navega adormecido
cavalo aquático entre orlas me contém,
vou ao senhor da morte: ele me espera
abrindo os braços ao azul do Lethes.

Não sei quanto demora esse senhor sombrio
surgir na linha das infundadas águas,
sei que está lá e vejo seu aceno
num relampejar de luz que o céu corta.

E eu que sou barco e mar
coadjuvantes numa mesma rota,
lampejo-me veraz senhora,
solene me navego entre as horas.


                                                                       Vilma Silva

ESPIRAL

Espiral
Vilma Silva


O dia nasce atrás de escombros fios mortos
do breu que a noite o andor depõe detrás da aurora
a luz aflora em sol espelhos de outros portos
manhãs em seu clarão no encalço de outras horas

O dia vai enfim tecendo pressupostos
que o louro Apolo a luz no céu aduz e ancora
Clarão do sol no véu azul em tocha aposto

Desliza o céu ao som da luz que enfim labora
acetinado ardor no seu dossel disposto
ao sempre igual andar de sua tela embora
pareça imóvel seu zimbório azul de agosto

E já o louro sol depõe o dia agora
na tarde que ora vai n’oeste doutro porto
A noite ancora então no andor de suas horas
.
   .
      .
         .
            .
            Tocha do sol no véu dourado de outros portos
            que a mão de Apolo o céu adensa e ali demora
            a tarde que ora vai depondo o dia morto
            E a sombra enlaça o sol no breu de suas horas

            O louro Apolo já depõe a luz agora
            e a noite vai enfim tecendo pressupostos
            ao sempre igual andar de sua tela embora
            pareça imóvel breu o seu dossel disposto

            No véu da noite ao som astral que enfim labora
            acetinada luz de estrelas em seu horto
            Vestal lunar atrás da nau de espessas horas

            Do andor que a noite então depõe detrás da aurora
            a luz aflora em sol espelhos de outros portos
            Manhãs que o dia aduz no enlace de outras horas
                                                                                           . 
                                                                                         .    
                                                                                       .           
                                                                                     .
                                                                                   .